Fonte: Diário de PE(20.08.15)
“Vou dar um tiro agora nesse veado preto”, foi com palavras como essas que Maria Clara de Sena afirma ter sido recepcionada numa vistoria do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura de Pernambuco (MEPC-PE), ao mais novo presídio de Pernambuco, inaugurado no começo de julho em Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste. A recepção, digna de um filme de ação B, teria sido protagonizada por um agente penitenciário que recebeu o grupo ligado à vigilância dos direitos humanos no último dia 17. A arma era do estado, o espaço, público, e a vistoria era para avaliar as instalações da unidade prisional que será o novo modelo do gênero adotado pelo estado.
Vítima de transfobia, Maria Clara, que é transsexual, registrou uma queixa na manhã de hoje no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), na Zona Oeste do Recife. O grupo foi acompanhado pelo advogado e vereador de Olinda Marcelo Santa Cruz (PT), que defendeu a importância da abertura de um inquérito. “O que aconteceu lá foi uma tentativa de homicídio, homofobia e discriminação racial”. Além do caso de Maria Clara, que também foi tratada como José pelo agente, os quatro integrantes do Mecanismo sofreram ameaças de morte.
“Se algum dia um agente for demitido por algum relatório do povo de direitos humanos, é nesse dia que vão começar a matar tudinho (sic)”, teria dito o agente que se identificou ao grupo como Eduardo, mas que, quando partiu para as agressões físicas ao grupo e à Maria Clara, foi tratado por seus colegas como Ricardo. “... os agentes deveriam parar de sair para matar bandido e começar a matar esse povo de direitos humanos”, “vocês defendem bandidos, porque nunca nenhum deles pegou vocês e estuprou”, foram algumas das frases que teriam sido ditas pelo funcionário público ao grupo.
O curioso é que o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura foi criado em dezembro de 2012 pelo governo de Pernambuco para monitorar as questões relativas aos direitos humanos em espaços onde há cerceamento de liberdade, a exemplo de presídios e hospitais psiquiátricos. O agente acompanhou o grupo e, em todos os momentos, tentou minimizar a atuação dos trabalhos. Desde o início tentou desestabilizar emocionalmente Maria Clara, insistindo em tratá-la como José. Quatro dos seis colaboradores do Mecanismo estavam na vistoria e acabaram saindo em uma viatura de polícia da unidade.
“Onde eu encontrar esse veado vou dar um tiro na cara dele”; “chega, bota essas mulheres para fora”; “odeio esse povo de direitos humanos” e “tomara que na volta, na BR, o carro capote e morra tudinho(sic)", disparou o agente, segundo as testemunhas. O relato das agressões chegou à reportagem do Diario por meio de um email enviado pelo Mecanismo às autoridades públicas do estado, a exemplo da Ministério Público e da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, a qual a comissão é vinculada. Foi num desses momentos que os outros agentes tentaram acalmar o servidor e o identificaram como Ricardo.
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O presídio foi inaugurado no dia 10 de julho como unidade-modelo, mas os agentes parecem seguir padrões bem antigos de comportamento. A Secretaria Executiva de Ressocialização abriu sindicância. Foto: Guilherme Verissimo/Esp DP/DA Press |
Na mira de uma arma
A colaboradora do Mecanismo Estadual Mariana Santa Cruz esteve no DHPP na manhã de hoje para prestar queixa. “O objetivo de nossa visita era avaliar as condições de uma unidade que seria modelo para todo o estado e acabamos sendo vítimas de agressão e ameaças”, acusou. O grupo foi ouvido hoje pelo delegado Alfredo Jorge e ontem pelo Ministério Público de Pernambuco. A principal vítima da violência praticada dentro da unidade prisional, Maria Clara, estava bastante abatida com o caso.
“A visita que fizemos foi realmente anormal. Nunca tínhamos recebido um tratamento desse. Todos nós que trabalhamos ficamos muito assustados. Esperamos que o estado tome as providências”, disse Maria Clara. O Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura foi criado perante um compromisso internacional, ratificado pelo Brasil, por meio do Protocolo Facultativo a Convenção contra à Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas e degradantes. O Estado de Pernambuco assumiu o compromisso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos (OEA).
Secretaria já afastou servidor
Mesmo sendo um órgão autônomo dentro do Governo de Pernambuco, o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura usa a estrutura da Secretaria de Justiça e dos Direitos Humanos, que respondeu a denúncia por meio de uma nota à imprensa. A secretaria garantiu que, desde que foi informada, tomou as devidas providências para garantir a segurança do grupo.
“No próprio dia 17, o secretário Pedro Eurico determinou à Secretaria Executiva de Ressocialização uma rigorosa apuração do fato, que foi imediatamente iniciada ainda na noite deste dia, com instauração de uma sindicância e apresentação do servidor à Superintendência de Segurança. O agente foi afastado da unidade para apuração dos fatos”, diz a nota, que ressaltou, ainda, que ouviu todos os integrantes do grupo para ouvir os relatos da acusação.
“A defensora dos Direitos Humanos Maria Clara de Sena foi imediatamente encaminhada para o Núcleo de Acolhimento Provisório, localizado na Secretaria Executiva de Direitos Humanos, onde uma equipe técnica fez a escuta da defensora e avaliação de risco. Desde então, ela está sendo acompanhada pelo programa, porta de entrada para o sistema de proteção de direitos em Pernambuco”. A secretaria também informou que está tomando as medidas necessárias para apurar a responsabilidade dos envolvidos no caso.
Presídio de Santa Cruz
O governo do estado inaugurou o novo Presídio de Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste de Pernambuco, no dia 10 de julho deste ano. A unidade foi construída no quilômetro 14 da PE-160. A nova unidade prisional ocupa uma área de 8 mil m2, sendo 1.473 m2 de área construída. O presídio abriga 186 reeducandos, divididos em 22 celas. Com a instalação do presídio em Santa Cruz, foram reacomodados presos também dos municípios de Jataúba, Toritama, Taquaritinga do Norte e Brejo da Madre de Deus. A obra durou dois anos e custou R$ 2,6 milhões, divididos em recursos do governo do estado e do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).