Entrevista – Dalmo Dallari
"Essa
aparência de risco de impeachment é uma grande fantasia. A grande imprensa
explora, faz disso um escândalo, porque ainda está em campanha eleitoral. Está
totalmente envolvida nesta campanha e explora fraquezas, inclusive a vaidade de
alguns que querem aparecer. Alguns até do Judiciário, que não resistem a uma
manchete", adiz o jurista Dalmo Dallari; ele afirmou que qualquer
iniciativa golpista enfrentará resistência da suprema corte; "Eu tenho
absoluta convicção. Eu sinto que a maioria dos ministros do STF se orienta
efetivamente pela Constituição", diz ele; confira a íntegra de sua
entrevista
Da Rede Brasil Atual – Aos 83
anos, Dalmo Dallari não se cansa de exercer o ofício que escolheu desde muito
jovem: o estudo e a defesa do Direito, como ferramenta de promoção da justiça
social e da cidadania. O jurista, respeitado no Brasil e internacionalmente,
faz questão de contar sua origem modesta e os esforços que empreendeu antes de
chegar à cadeira de titular da Faculdade de Direito da USP. É uma forma de
estimular os mais jovens a não desistir de seus sonhos, argumenta. Ele nasceu em Serra Negra (SP),
filho e neto de sapateiros. Com 14 anos foi morar na capital. Foi office boy de
uma indústria, e nunca parou de ler e estudar. Conseguiu concluir o ciclo
fundamental e médio de ensino por meio do antigo Madureza, espécie de
“intensivão” para dar conta das exigências curriculares.
Passou no vestibular na faculdade onde
cursou Direito, lecionou e se aposentou, e jamais abandonou a atividade
acadêmica. Até hoje atende a convites pelo país afora, e sempre leva consigo um
conselho aos ouvintes: “Tenha sempre consigo um exemplar da Constituição. É
muito importante”. Ele diz já ter ouvido em muitos países que a Carta Magna
brasileira é uma das mais democráticas do mundo, por ter sido construída com
intensa participação da sociedade e, por isso, refletir conquistas importantes
da humanidade, que estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Segundo
Dallari, esta mesma Constituição precisaria ser estrondosamente violada para
que algum dos setores que hoje tentam emplacar um pedido de impeachment de
Dilma Rousseff levem adiante suas manobras, que chama de “fantasiosas”. É o que
ele afirma categoricamente em entrevista concedida ao programa de webTV
Contraponto, produzido pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo e o Centro de
Estudos de Mídia Barão de Itararé, do qual destacam-se a seguir os principais
trechos.
Qual a possibilidade de um impeachment contra a presidenta Dilma
se materializar?
Vivi antes de 1964 e percebi o que levou
ao golpe. Havia uma exploração muito grande de uma situação nova decorrente da
Segunda Guerra, da afirmação dos direitos humanos, inclusive dos direitos
sociais, e entre nós houve uma associação – e tem se falado muito pouco disso –
de empresários com militares. O golpe foi civil-militar. Vi claramente essa
interferência do empresariado no golpe que foi apresentado como militar. Há
elementos hoje que comprovam isso. Empresários deram dinheiro para contratar
professores de tortura. Para contratar máquinas de torturar. Eram duas grandes
forças que tinham interesses coincidentes. Queriam de qualquer maneira impedir
o avanço dos direitos sociais. Havia sindicatos organizados, muita
conscientização dos direitos sociais, e as elites ricas e a igreja católica
mais reacionária ficaram com medo desses avanços. Inventaram a tese do “perigo
comunista”. Ninguém estava querendo comunismo no Brasil, apenas uma sociedade
mais justa. O dado essencial é que grupos poderosos tinham naquele momento
interesses coincidentes. Se fizermos o exame dos grupos que existem hoje no
Brasil, não há essa coincidência. Há uma multiplicidade de pequenos grupos, de
pequenas forças. Não há um grande líder. Não há um grande partido, não há uma
grande força política.
“Qualquer pessoa que pega
um jornal vê quantas vezes aparece o ‘supõe-se que...’ ‘teria feito...’ ‘haveria...’
ganharia...’ Quando sabe-se que o delator só quer tirar proveito pessoal”
Mas o processo é político, dispensa provas. E se o Congresso
tomasse essa atitude?
A Constituição estabelece que a última
instância é o Supremo Tribunal Federal. Então não importa se o Congresso admita
“ah, vamos fazer”. Tudo fica sujeito à decisão em última instância do STF. E o
STF, acompanho muito de perto, na sua maioria se orienta efetivamente pela
Constituição. Eu circulo muito pelo Brasil a convite de estudantes e professores,
advogados, promotores, recomendando que as pessoas tenham em casa um exemplar
da Constituição. É importante. A Constituição diz no artigo 85: são crimes de
responsabilidade (e o impeachment tomaria por base a acusação de um crime de
responsabilidade) os atos do presidente da República que atentem contra a
Constituição. “Atos do presidente”, dois pontos importantes: primeiro que sejam
atos do presidente, e tem gente falando em atos da Petrobras, das subsidiárias,
dos ministros e não sei quem, então não são atos do presidente; mais adiante, o
artigo 86 diz que o presidente da República, “na vigência de seu mandato” não
pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (tem
de haver um “ato do presidente” que fira a Constituição e “no exercício”, no
caso, do atual mandato). Então, isso não se aplica.
O Supremo barraria esse processo?
Eu tenho absoluta convicção. Eu sinto que
a maioria dos ministros do STF se orienta efetivamente pela Constituição. Tem,
sim, ministro que despreza a Constituição, não leva a sério. Mas nessa decisão
recente a respeito da ilegalidade do financiamento eleitoral por empresas ficou
evidente. A maioria se orientou pela Constituição. Por isso, essa aparência de
risco de impeachment é uma grande fantasia. A grande imprensa explora, faz
disso um escândalo, porque ainda está em campanha eleitoral. Está totalmente
envolvida nesta campanha e explora fraquezas, inclusive a vaidade de alguns que
querem aparecer. Alguns até do Judiciário, que não resistem a uma manchete.
O senhor, em 2002, escreveu um artigo que até hoje repercute
alertando para o risco de se ter alguém como o ministro Gilmar Mendes no STF...
Realmente, o ministro Gilmar não é um
respeitador da Constituição, e ele está jogando politicamente. Basta lembrar o
que aconteceu com o processo de financiamento eleitoral por empresas. O
ministro segurou durante um ano e meio esse processo, de maneira absurda e
irracional. Mas a possibilidade dele de interferir, de influir, de atrapalhar é
limitada. Ele não vai conseguir impor ao Supremo sua orientação. Essa decisão a
respeito do financiamento eleitoral por empresas deixou isso mais do que
evidente. A maioria dos ministros do Supremo respeita a Constituição.
E essa Constituição, eu tenho ouvido isso
em vários países, é das mais democráticas do mundo, porque foi feita com muita
participação popular. Tem um conteúdo humanista. Consagrou direitos
tradicionais, civis e políticos, e também direitos econômicos, sociais e
culturais. Por que razão os tribunais de maneira geral estão abarrotados de
processos? É porque ficou muito mais fácil ir ao Judiciário. Há vários anos, na
periferia de São Paulo, logo depois que saiu a Constituição de 88, eu falava
nos direitos fundamentais, nos direitos humanos, nos direitos sociais, e lá no
fundo uma mulher levantou a mão e disse: “Tudo isso que o senhor disse é muito
bonito, mas não é para nós”. Os brasileiros mais pobres não acreditavam que
tivessem direitos, e agora acreditam. Agora temos também o povo defendendo a
Constituição; é um dado novo na história brasileira e extremamente importante.
O senhor poderia citar algum episódio em que o ministro Gilmar
atropelou a Constituição?
Isso vem de muito longe, mas eu citaria
como evento uma situação muito expressiva. O ministro Gilmar Mendes é do Mato
Grosso, de família de grandes proprietários de terras, e eu há muito anos sou
advogado de índios – aliás, eu não pareço, mas sou índio de quatro tribos,
porque as defendi, ganhei e me deram o título. Meu primeiro enfrentamento com o
Gilmar Mendes foi exatamente na questão indígena. Ele defendia invasores de
terras indígenas e eu defendia os direitos constitucionais dos índios, e lá
ficou muito evidente que a posição dele não era determinada pela Constituição,
pelo direito e pela Justiça, mas pelas conveniências, e isso realmente não era
atitude de jurista. Depois se somaram outros elementos, houve uma acusação a
ele, que não fui eu que fiz, mas uma grande revista da época. Ele era
advogado-geral da União, e ao mesmo tempo era empresário da educação,
proprietário de escola, e ele matriculou auxiliares na sua escola, mesmo que
não frequentassem. Por isso a revista publicou um reportagem “Os dois lados do
balcão”.
O juiz Sérgio Moro não teria uma postura de promotor, mais do que
juiz?
O juiz Moro de fato tem exagerado, tem
agido como delegado de polícia, como Ministério Público e juiz. A minha
avaliação é que houve um certo deslumbramento, a imprensa deu muita ênfase, foi
uma glorificação. Ele é um ser humano e eu tenho dito: não perca de vista que
os juízes são seres humanos. Eu sempre fui contra a transmissão das decisões,
acho um absurdo, porque o juiz sabe que está sendo visto por milhões e pode ser
influenciado. Por mais que queira se ater ao Direito, é ser humano, tem
vaidade. Acho que isso pesou no juiz Sérgio Moro, pelo enorme espaço dado pela
imprensa.
A Operação Lava Jato trabalha com informações sobre o papel
importante das empreiteiras nos bastidores da política brasileira. O que o
senhor pensa da operação como um todo?
A apuração de ilegalidades sempre é boa,
apenas a exploração dos fatos é que é, até diria, desonesta, porque dá a
impressão que começou isso agora no Brasil e, no entanto, empreiteiras e
grandes empresas sempre usaram caminhos subterrâneos para obter proveito. O
fato negativo é apresentar isso como fato novo no Brasil, quando não é. E não
há dúvida que na imprensa há uma obsessão anti-Lula e anti-PT. Quero deixar
isto muito claro: eu nunca fui do PT e desde que optei por ser professor
imediatamente também decidi que jamais me envolveria com partidos políticos.
Mas evidentemente a imprensa tem um antilulismo obsessivo, e é uma pena, porque
distorce o noticiário, grande parte é fantasiosa. Qualquer pessoa que pegar um
grande jornal vai verificar quantas vezes aparece o “supõe-se que... teria
feito... haveria ... ganharia”, tudo na condicional. Não se afirma nada, se
insinua, “ele teria sido beneficiado... poderia ser... supõe-se que”. E isso
não é fato, isso não é notícia. Infelizmente, é uma linguagem na nossa imprensa
diária.
“Ainda se fala muito no
político ficha suja, mas infelizmente tem o eleitor ficha suja, que vende seu
voto, troca voto por favores. Então, é preciso um trabalho de reeducação
cívica”
Tivemos lá atrás o domínio do fato, e agora os processos e
sentenças baseados nas delações premiadas...
Eu tenho seríssimas restrições à delação
premiada. É de origem italiana o conceito do arrependido, que trai para ganhar
algum benefício. Mas não se perca de vista que o delator é, antes, um
criminoso. Ele é endeusado pela imprensa porque faz acusações, mas se esquecem
disso, é um criminoso confesso. A delação premiada tem valor muito baixo, é
imoral, essencialmente imoral, e duvidosa do ponto de vista jurídico, porque
muitas afirmações são mentirosas e esse é um dos casos em que aparece o “teria
feito, ganharia isso, seria isso e mais aquilo” sem comprovação. Sabe-se que o
delator está procurando proveito pessoal, reduzir a sua pena, ganhar liberdade,
então realmente não é confiável.
Algumas pessoas acham que as apurações reforçam a República,
outros acham que não. Qual a sua opinião sobre isso?
Acho bom que haja um despertar de
consciência, que muita gente perceba que existe corrupção, sim, que é
importante ficar contra a corrupção. É um caminho meio tortuoso, mas é um caminho
de despertar a consciência. Tenho um livrinho, Direitos Humanos e Cidadania,
que fala muito da necessidade de criar a consciência cidadã, que cada um
perceba que tem direitos, e também responsabilidade. Ainda se fala muito no
político ficha suja, mas infelizmente tem o eleitor ficha suja, que vende seu
voto, troca voto por favores. Então, é preciso um trabalho de reeducação
cívica, de conscientização, para que a pessoa perceba que tem direitos e responsabilidades.
O senhor é a favor de uma nova constituinte?
Não, não. Eu circulo muito pelo Brasil e
outros países e já ouvi afirmação de que o Brasil tem uma das constituições
mais democráticas do mundo, porque realmente ela reflete conquistas importantes
da humanidade, conquistas que estão na Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Primeiro, a Constituição de 1988 foi feita com intensa participação
popular. Criamos em São
Paulo – e o principal criador nem era da área jurídica, era
um engenheiro, Francisco Whitaker – um movimento pela participação popular, e
ali se criou a Iniciativa Popular, o direito do povo de propor leis. Só para
ter exemplo do que isso significa, a Lei Maria da Penha não foi iniciativa de
nenhum parlamentar, foi do povo. A Lei da Ficha Limpa também. Então, avançamos
muito e o que há por fazer é aplicar a Constituição.
O senhor escrevia num grande jornal e depois deixou de escrever.
Como foi essa história?
Eu realmente escrevia num grande jornal
(Folha de S.Paulo) e um dia me chamaram lá e disseram: “Olha, infelizmente não
vai mais dar para continuar publicando os seus artigos. Gente da indústria, do
setor automobilístico, disse que se continuarmos a publicar seus artigos vai
ser cortada toda a publicidade”. Vou contar o personagem, que até já morreu:
Wolfgang Sauer, da Volkswagem, e presidente Associação Nacional da Indústria
Automobilística (Anfavea). Eu escrevia sobre direitos sociais, isso era
considerado indesejado. Mas eu nunca preguei violência, sempre falei nos
caminhos da Constituição, da Justiça, mas isso era considerado uma agressão. E
perdi meu espaço na grande imprensa.
O
programa Contraponto teve participação
dos jornalistas Kiko Nogueira, Luiz Carlos Azenha, do blogueiro Eduardo
Guimarães e mediação do diretor da RBA, Paulo Salvador
Nenhum comentário:
Postar um comentário