Gostaria de compartilhar com vocês essa crônica de Joca Souza Leão que retrata bem uma rotina atual e muitas vezes passa desapercebida.
Forte abraço.
Joca Souza Leão
A velhinha estava na porta da farmácia. Quando passei, ela disse "meu filho, se não comprar no cartão, traga um trocadinho pra mim". Respondi "tá", mas sem entender direito o que ela tinha dito. Só registrei o "trocadinho". Quando estava pagando, foi que me toquei: "Se não comprar no cartão..." Claro, no cartão não tem troco. Já sai com a desculpa pronta: "Foi no cartão". E ela: "Hoje é tudo no cartão." Fui até o carro, juntei as moedas que guardo pros flanelinhas e dei todas a ela. "Como é seu nome?" "Regina. Regina Celi." (Ou Coeli, em italiano? Bateu-me a dúvida agora.)
A caminho de casa, Dona Regina não me saía do juízo. "Tudo é no cartão." E é. Menos esmola. Nunca tinha pensado nisso. O cartão ferrou Dona Regina. Lembrei de outro mendigo, Lauro, que é conhecido de Bóris Trindade, e achei que ele também tivesse se ferrado. Mas, pensando melhor, talvez não. Lauro é mendigo na feira de Fazenda Nova. E na feira não se compra no cartão. Já contei esta história na coluna Pano Rápido da revista Algomais: Lauro anota num caderno o nome de quem lhe dá esmola, valor e data, tudo direitinho. Bóris lhe perguntou pra quê. "Pra não pedir de novo, doutor. Só quero o que é meu."
Ensinar sobrevivência a Dona Regina seria muita pretensão minha. Mas, não estivesse o trânsito tão ruim, teria voltado à farmácia para lhe dar a dica que me ocorreu, sacada da história de Lauro. Pensei até no que lhe diria, com jeito e cuidado para que não se ofendesse com minha intromissão: "Dona Regina, como a senhora sabe, rico e remediado não andam mais com dinheiro, é tudo no cartão. Mas tem um lugar que ainda se compra com dinheiro e, portanto, tem troco e trocado: feira pública. E tem feira todos os dias (ou quase todos, acho), cada dia num bairro." Nunca mais a encontrei na porta da farmácia. Prefiro acreditar que ela sacou o lance da feira. Se bem que, vez por outra, vou às feiras da Encruzilhada e de Casa Amarela e nem sinal dela por lá.
Esse encontro com Dona Regina foi há mais de um ano. Mas até hoje sua figura e resignação me comovem. Devia ter uns 70 e poucos (ou tantos, a julgar pela aparência, a pobreza envelhece), magrinha, baixinha e pele clara. Olhos também claros, verdes, talvez, e muito vivos, brilhantes e atentos. Nosso diálogo foi breve, mas falou olhando nos meus olhos. Pareceu-me muito limpinha, cabelos encanecidos e lisos, presos num coque. Unhas cortadas e limpas, pude ver quando recebeu as moedas. Apenas agradeceu: "Obrigada." Nada de "Deus lhe pague", "que Jesus lhe proteja"... Resignada, no entanto. "Tudo hoje é no cartão." Como se dissesse: "Que se há de fazer?" E generosa, também. Suas palavras continham a justificativa a ser dada pelo fato de não se ter trocado: "A culpa não é sua. São os novos tempos, a modernidade." Que lição, hein?
Aprendi duas outras coisas importantes, recentemente, num pequeno mercado, que eu pensei nem existisse mais, em frente à Igreja Rosário dos Pretos, no Centro. A especialidade é queijo-manteiga e queijo-coalho, manteiga de garrafa, linguiça matuta, carne de sol e salpresa (carne de sol de porco, que dá de dez a zero na carne de sol de boi). Perguntei ao vendedor como ele preparava a linguiça e a salpresa. "Doutor, nada de escaldar a linguiça nem deixar de molho. É só lavar. E fritar ou assar na brasa. Salpresa, uma ou duas horas antes de fazer, o senhor deixa de molho em água gelada. Depois, meia hora no leite. E pronto. Aí, é só fritar ou assar, no forno ou na brasa. O pessoal escalda a linguiça, deixa a carne de molho de um dia pro outro e ainda quer que tenha gosto. Gosto de nada, né?"
É isso. "Vivendo e aprendendo", como nos versos de Shakespeare, aqui, nas sábias palavras de Dona Regina e do vendedor de salpresa.
Joca Souza Leão é cronista
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