Em um governo presidido por uma mulher torturada, não se pode pedir à nação compactuar com assassinos
O DIA
Rio - Todo escritor se posta na janela da alma para observar o mundo. Não faz mais do que traduzir em palavras o que, para muitos, seria indizível. Cada autor possui seu próprio binóculo, sem que se possa compará-los. Machado de Assis enxergava por seu ceticismo crítico, e Guimarães Rosa evocava a ruralidade ameaçada, qual lamento nostálgico de quem vê a explosão urbana destruir uma cultura enraizada na sabedoria, e não na erudição.
A fé cristã sempre me induz à esperança, ainda que, como Abraão, me faltem razões para abraçá-la. Há momentos, entretanto, que minha esperança tropeça. É o que me ocorre quando vejo o novo ministro da Defesa, Jaques Wagner, declarar que assume o cargo sem “uma lanterna na mão para o passado” e chega para “cicatrizar as feridas”.
Isso quase no dia seguinte à divulgação dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, que apurou os crimes da ditadura militar, sem que o governo se empenhe em punir os responsáveis (e espero que não o faça na mesma medida em que foram punidas as vítimas, com torturas, estupros, mortes, sequestros, exílios, banimentos e desaparecimentos).
A adotar essa lógica, devemos pedir aos judeus que esqueçam Auschwitz? Aos palestinos que aceitem as ocupações de suas terras e as atrocidades do governo de Israel na Faixa de Gaza? Aos povos indígenas que deixem de cobrar a dívida histórica que se acumula sem pesar em nossa consciência?
O memoricídio é a garantia da perpetuação do mal. Toda a Bíblia foi escrita e sacralizada para se impedir que o olvido pague a fiança do sofrimento irreparável; no entanto, é possível evitar a sua repetição. Em um governo presidido por uma mulher que sofreu torturas e prisão, não se pode pedir à nação que compactue com assassinos e seus cúmplices que insistem na paz dos cemitérios. Há, sim, que projetar muita luz sobre o passado. O Brasil tem o dever de, à semelhança da Argentina, do Chile e do Uruguai, julgar aqueles que foram responsáveis por acionar a máquina de terror movida pelas mãos do Estado fardado.
O filme ‘O arrependimento’, de Tengiz Abuladze, conta a história da morte do prefeito de uma pequena cidade. Todos choram, exceto a mulher que vive de fazer bolos em forma de igrejas. É uma das vítimas da prepotência daquela autoridade e, agora, insiste em manter o cadáver insepulto. Desenterra-o a cada noite, para que ninguém se esqueça daquele que encarnara a opressão. Feridas causadas pelo arbítrio não se fecham com cicatrizes, e sim com justiça.
Rio - Todo escritor se posta na janela da alma para observar o mundo. Não faz mais do que traduzir em palavras o que, para muitos, seria indizível. Cada autor possui seu próprio binóculo, sem que se possa compará-los. Machado de Assis enxergava por seu ceticismo crítico, e Guimarães Rosa evocava a ruralidade ameaçada, qual lamento nostálgico de quem vê a explosão urbana destruir uma cultura enraizada na sabedoria, e não na erudição.
A fé cristã sempre me induz à esperança, ainda que, como Abraão, me faltem razões para abraçá-la. Há momentos, entretanto, que minha esperança tropeça. É o que me ocorre quando vejo o novo ministro da Defesa, Jaques Wagner, declarar que assume o cargo sem “uma lanterna na mão para o passado” e chega para “cicatrizar as feridas”.
Isso quase no dia seguinte à divulgação dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, que apurou os crimes da ditadura militar, sem que o governo se empenhe em punir os responsáveis (e espero que não o faça na mesma medida em que foram punidas as vítimas, com torturas, estupros, mortes, sequestros, exílios, banimentos e desaparecimentos).
A adotar essa lógica, devemos pedir aos judeus que esqueçam Auschwitz? Aos palestinos que aceitem as ocupações de suas terras e as atrocidades do governo de Israel na Faixa de Gaza? Aos povos indígenas que deixem de cobrar a dívida histórica que se acumula sem pesar em nossa consciência?
O memoricídio é a garantia da perpetuação do mal. Toda a Bíblia foi escrita e sacralizada para se impedir que o olvido pague a fiança do sofrimento irreparável; no entanto, é possível evitar a sua repetição. Em um governo presidido por uma mulher que sofreu torturas e prisão, não se pode pedir à nação que compactue com assassinos e seus cúmplices que insistem na paz dos cemitérios. Há, sim, que projetar muita luz sobre o passado. O Brasil tem o dever de, à semelhança da Argentina, do Chile e do Uruguai, julgar aqueles que foram responsáveis por acionar a máquina de terror movida pelas mãos do Estado fardado.
O filme ‘O arrependimento’, de Tengiz Abuladze, conta a história da morte do prefeito de uma pequena cidade. Todos choram, exceto a mulher que vive de fazer bolos em forma de igrejas. É uma das vítimas da prepotência daquela autoridade e, agora, insiste em manter o cadáver insepulto. Desenterra-o a cada noite, para que ninguém se esqueça daquele que encarnara a opressão. Feridas causadas pelo arbítrio não se fecham com cicatrizes, e sim com justiça.
Frei Betto é autor de ‘Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira’ (Rocco)
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